Chega uma hora em que você se cansa de contar carneiros. O silêncio penetra por seu corpo mas o sono não vem. A luz está apagada, mas você percebe que não enxerga menos por causa disso, na verdade, enxerga mais do que deveria. As horas passam, coisas se mexem, se transformam e o mundo gira. Sei que é difícil crer no que os olhos não podem ver, mas nada é como parece ser.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Como ajudar você?


De uma hora para outra, lá estava eu. No terraço de uma casa que, de alguma forma, sabia que era minha. Me debrucei sobre o muro e me assustei quando percebi que estava à vários andares de altura e que bem lá embaixo a rua estava molhada de chuva. O céu estava nublado. Me virei para contemplar o terraço e, poucas vezes durante toda a minha vida, eu tinha visto lugar tão belo como aquele.
Havia vasos de plantas encostados junto aos muros que cercavam o terraço. Presas por ganchos de metal ao telhado haviam samambaias muito verdes, que arrastavam no chão, além de lustres de cristal que não estavam ali antes. No meio de tudo haviam várias mesas dispostas e arrumadas como que para uma grande festa, e no canto direito havia uma caixa d'água suspensa por dois muros, com um pouco de tralhas e bugigangas na frente, a única coisa que não combinava com a arrumação daquele belo recinto.
Fiquei pensando no que aconteceria ali naquele dia. Raramente recebíamos pessoas em casa, pois, embora não admitisse, minha mãe não gostava muito de visitas e muito menos de dar festas.
Resolvi descer para perguntar o que estava planejado para aquela noite, pois eu sentia o cheiro de comida sendo preparada na cozinha. Desci os degraus de metal e, quando passei pela porta da casa, algo me chamou a atenção. Voltei para trás e olhei novamente.
Sentado aos pés da escada de entrada da casa estava um garoto que aparentava ser mais ou menos da minha idade. Ele estava sem camisa, com a bermuda rasgada e suja, assim como o resto do corpo. O cabelo era um pouco grande e despenteado. Ele olhou para mim como se eu fosse sua última esperança, estendeu uma das mãos e murmurou, quase sem forças "Comida".
Desci correndo os degraus da entrada e o ajudei a levantar. Ele estava tão fraco que mal conseguia subir a escada. Com muito esforço, sentei-o em uma cadeira e fui buscar algo para que ele comesse.
Quando estava na cozinha, junto das empregadas, escutei ruídos vindos da frente de minha casa. Olhei pela janela e pude ver minha mãe entrando pelo portão. Se ela visse aquele garoto ali, certamente as coisas não ficariam muito boas para mim.
Corri apressado para a varanda e ajudei o menino a subir o lance de escadas que dava para o terraço. Não seria possível tirá-lo dali sem que minha mãe o visse. Quando terminamos de subir a escada, olhei a volta e o único lugar que poderia servir de esconderijo era o vão embaixo da caixa d'água. Coloquei o garoto sentado em uma cadeira de festa e arrastei, apressado, o monte de entulho que bloqueava a entrada do esconderijo. Segurei-o novamente e o levei até o local. Ele se sentou no chão e eu arrastei novamente os entulhos de volta ao lugar. Olhei por cima da bagunça e disse a ele "Aguente firme. Vou trazer algo para que você coma logo logo".
Não sei ao certo se ele assentiu ou se sua cabeça pendeu por estar tonto de fome. Eu estava muito preocupado com ele, com medo que que algo pior pudesse lhe acontecer. Desci correndo as escadas de metal e dei de cara com minha mãe entrando pela porta da frente. Ela parou, me olhou meio espantada e perguntou "Ei, o que foi? Porque está corrende feito um maluco?".
_ N-nada, mãe -disse eu- Eu só queria saber o que vai acontecer no terraço hoje. V-você vai dar uma festa?
Ela olhou meio desconfiada, como se soubesse que aquele não era nem de longe o real motivo:
_Sim, eu vou. E, a propósito, meus convidados já estão chegando. Venha me ajudar a levar o jantar lá pra cima!
_Mas, mãe...
_Sem queixas! -interrompeu-me ela com um olhar feroz- Não permitirei que nem mesmo você estrague as coisas no dia de hoje. Esse jantar é um jantar de negócios!
Abaixei a cabeça e segui, com muita raiva, em direção à cozinha. Minha mãe já era estressada por natureza, mas sempre ficava pior em dias de viagem ou jantares de negócios.
Apanhei a primeira bandeja empanturrada de bolinhos de goiabada. Aquela era minha chance de ajudar o garoto. Subi as escadas com pressa, quase derrubando tudo, e coloquei o prato sobre uma mesa. Peguei um punhado de bolinhos e, quando me dirigia para o esconderijo, minha mãe havia acabado de aparecer com uma bandeja cheia de scargots. Ela me olhou com raiva e gritou:
_O que você pensa que está fazendo? A comida é para os convidados! Suma da minha vista antes que eu te jogue escada abaixo!
Eu evitei passar muito perto dela enquanto descia as escadas. Se eu demorasse muito a fazer alguma coisa pelo menino, certamente ele morreria ou seria encontrado por algum convidado curioso.
Quando pensei que as coisas não poderiam ficar piores, foi aí que ficaram. A campainha tocou e minha mãe gritou para que eu atendesse. Ela só sabia gritar comigo.
Abri a porta e um casal elegante entrou, sem nem sequer me cumprimentar. Atrás deles vinham dois meninos gêmeos, que deveriam ser seus filhos. Os dois fizeram uma careta para mim assim que me viram. Retribuí o gesto.
Minha mãe desceu a escada e abriu um largo sorriso quando viu os visitantes. Aliás, ela só sorria para as pessoas de fora. Era como se um novo espírito tomasse conta dela sempre que ela não estava sozinha comigo. Duas pessoas em uma só.
_Ah, sim! Que honra recebê-los em minha casa, Sr e Sra Rossier! Sintam-se à vontade. Podem subir para o terraço e se acomodar em uma mesa. Já já começaremos a servir o jantar.
Se existia alguma chance de ajudar o menino quase morto de fome escondido em meu terraço, essa já havia escorrido por água abaixo.

domingo, 6 de março de 2011

O Visitante Indesejável


Há o que falar da morte? Existem palavras que descrevam o que sentimos quando ela nos faz uma pequena visita?
Particularmente, acho a morte um pouco mal-educada. Ela chega sem avisar, não se senta pra pedir um chá, rouba algo que amamos e vai embora, sem nem ao menos se despedir. Mas ela sempre deixa várias coisas que fazem com que nunca nos esqueçamos dela: Dor, choro, desespero, inconformidade e por aí vai, nos fazendo sentir como um nada diante dela, faltando pouco escrever na parede "a morte passou por aqui".
Na verdade, ela tem razão. A vida é um período em que a morte está de bom humor, pois no dia em que ela se cansa de você, que não vai mais com a sua cara, ela vem e te leva com ela. Ou talvez seja o contrário. Quem sabe a morte não seja apaixonada por nós, seres humanos, e por isso fique sempre à espreita, procurando uma brecha no espaço-tempo para poder atacar e nos levar para viver (ou morrer) em seu mundo? Talvez o maior sonho da morte seja ser viva, como nós ainda somos. E para um inimigo que não pode ser igual à nos, nada melhor que tentar fazer com que sejamos iguais a ele.
A morte é astuta. Cuida para que seus segredos jamais caiam nas mãos da humanidade, fazendo com que nunca seja possível vencê-la, pois ela sabe, não somos deuses mas somos capazes de pensar, coisa que ela abomina e por isso, raramente o faz. Ela simplesmente está no lugar certo, na hora certa para realizar seu serviço e nada além disso. Acho que talvez não a paguem tão bem para que ela dê ao menos um sorrisinho sarcástico. Talvez ela seja a própria materialização do sarcasmo, pois ela é autêntica, não depende de nossos sentimentos e por isso não hesita em perturbá-los.
Uma esperança para quem não gosta de pensar no dia em que a verá face a face é pensar que a morte não é o fim de tudo, mas sim, apenas o inicio de uma nova aventura, ainda mais interessante.